No livro de contos A mecânica bruta dos ossos as personagens cuidam perversamente. Mulheres sugadas pelas relações, o amor pecando pelo excesso, o cotidiano encubando o ódio. Na literatura de Alexandre Arbex há, ao mesmo tempo em que uma construção do estranhamento, a sensação de reconhecer nossas próprias vidas caso pudéssemos imaginá-las (e escrevê-las) sem pudores. Neste livro, o cuidado, sempre socialmente naturalizado como atribuição das mulheres, aparece como “relíquia e ruína” das relações, tentativas de captura e aprisionamento em uma dinâmica que confunde intenções.
No conto “Colostro” – o primeiro leite que aqui dura uma vida inteira – a “poça rosa de perfume e sangue” mostra a onipotência da mãe que pode dar a vida aos filhos ou até deixá-los morrer. Nutrida por alimentar, ela talvez suspeite que, como conta a poeta Mar Becker: o leite das mulheres, água de arroz, é sempre ralo para a fome dos homens.
A substituição/fusão perturbadora suspende os lugares familiares habituais e reconfigura os corpos em “Aquela rapaz”, mostrando que na literatura de Alexandre as personagens podem tudo. Se filmados, seus contos seriam como o começo do cinema do cineasta grego Yorgos Lanthimos, onde quem cuida, entre sacrifícios e preenchimentos, cria um mundo de terror sob a aparência de proteção.
O livro também fala de aparições e desaparecimentos cotidianos, da mágica de apagar e emudecer o outro. Rinhas de pais, vontades de filhos, mulheres que em suas obrigações cotidianas estão cansadas de viver “cortando fora a parte podre, polindo a redoma, vigiando o gás”. Enfermeira, atriz pornô, mãe, filha, uma morta-narradora que monta o conto, rearranja os lugares, dirige a vida de quem ficou. Em “Dieta”, uma força diferenciadora faz a filha tentar não ser a mãe inventando privações absurdas ou nem tão absurdas assim.
No livro anterior, Pessoas desaparecidas, lugares desabitados, também estão lá os corpos que vazam das páginas completando-se e repelindo-se, filhos que desaparecem, quartinhos fechados, ausências e presenças injustificadas, siameses “em comunhão de males e obrigação de amar”. Como sua leitora atenta e admirada, tenho a impressão de que não é a primeira vez, nem apenas outra vez,
que Alexandre Arbex está escrevendo sobre obsessões tão humanas e histórias perversas de todos nós. É a mesma vez.
Juliana Otoni