O que podem tocar as mãos bem pequenas de uma lha? Como funcionam os fluxos da memória que permitem, ainda que por um momento, a emergência de Miss Ambrosia e Mister Sagu? Os versos de Marco de Menezes são sempre convidativos e generosos, sem abrir mão de sua peculiar abertura à estranheza e às imagens insólitas. Neste livro, a poesia alcança o espaço entre duas nuvens, a cidade natal dos relâmpagos, “onde nenhuma história é contada”. Quando desce das lonjuras do alto, a atenção meticulosa do poeta nos faz imaginar uma conversa entre o East River e o Rio das Antas.
Por que as crianças que tendem ao colecionismo falam mais sobre os fantasmas? Talvez seja algo típico desse mundo no qual as caturritas levam mensagens a dois pedreiros sonolentos, dizendo que o ar que nos circunda é enganoso e que a morte é dom de todos.
Aos poucos a galeria de personagens se expande, porque neste universo os corpos não são apenas coordenadas materiais no tempo-espaço, são também sentimentos, sensações, afecções. É o caso de Pacheco, o porteiro, que no escuro chama o elevador para quem chega, misto de Cérbero e Virgílio, mas também evocação dos ajudantes de Franz Kafka e Robert Walser.
Os ternos de Charlie Parker e outros poemas leva seu leitor a uma dimensão cuja frequência destoa do padrão de realidade, na qual Baudelaire, “sem luvas”, transmite “o efeito do láudano”.
Com as condições corretas de temperatura e pressão, você pode inclusive acompanhar a vida secreta dos riachos, “de noite mastigam pedras” e “de manhã mastigam nuvens”. Este livro – como costumam ser as grandes obras literárias – é tanto uma celebração dos mistérios do mundo quanto a descrição das insuficiências da realidade.
[Kelvin Falcão Klein]