Sandra Ling nesta estreia em livro, ao reunir sua trajetória de poeta, artista plástica e paisagista, consegue sutilmente imprimir traços da voz e da imagem em diálogo inacabável. Quem se debruçar com a devida calma sobre sempre é outra superfície, logo vai descobrir que aqui a visão da linha vira planta, que por sua vez vira carne, que então vira corpo em pulsação, numa metamorfose contínua que incorpora aqueles que a contemplam para se tornarem agentes mediadores de curiosas ambiguidades deliberadas.
Ao mesmo tempo, o texto esboça contornos, por vezes nítidos de cores, por vezes sob gazes tênues e porosas, que nos lembram o melhor da poesia oriental, seja pela concisão, seja pela sugestividade do não dito. Em outras palavras, os poemas também são metamórficos, porque dizem muito mais do que parecem e insistem em estar numa superfície sempre outra, sem aquela suposta profundidade que tanto fascina alguns artistas mais ingênuos.
(Guarde-se aquele adágio fundamental de Paul Valéry: “o mais profundo é a pele”. Ao que eu acrescentaria: porque a pele é aquilo que nunca está parado, logo é sempre outra superfície, outra profundidade.)
Ao longo dessa leva de páginas instáveis, a transição contínua de uma coisa em outras, sem estancamento temporal ou corte claro, é a marca tanto das imagens quanto da textualidade; de modo que, no limite, o texto vira imagem e a imagem vira texto.
Por isso mesmo é que, na junção das duas frentes que Ling domina, emerge a força crucial do livro: nas frestas que se criam, nas hesitações tantas vezes sugeridas, é possível aprender múltiplos modos sinuosos de reinventar delicadezas. Então, se o poema der certo, se a imagem invadir o olho da mente, essa nova superfície será novo mundo, ou ao menos um potencial de mundos por viver. Eis o que podemos encontrar nas três partes do livro, em “das primaveras e outonos”, “de todas as águas” e “da seiva bruta”, como se o entrelaçamento de poesia e imagem fosse também um ensaio, no sentido pleno da palavra: tanto reflexão livre do pensamento, como uma preparação por meio de repetição. Arte e vida são, afinal, sempre ensaios.
Guilherme Gontijo Flores