Morton Feldman diz que papel e lápis são muito importantes para ele, por causa dos olhos. Depois afirma que a música que imagina cumprir vem toda, principalmente, das primeiras frases de Kafka, coisas como “Alguém tem contado mentiras sobre você”. E lembra de Béla Bartók, “mesto”, e de seu trabalho de composição, Mikrokosmos, com 153 peças impressionantes para piano. E isto para anotar e lembrar algo que está no procedimento de Silvio Ferraz quando escreve seus textos e, raras vezes, os publica em livro. Silvio é professor de composição na USP e compositor de pequenas peças mirabolantes, como “Kairos II: resposta a Chronos IX” [para 6 violoncelos e 2 percussões] ou “Responsório de Domingo de Ramos” [em memória de Eduardo Álvares].
Aqui, neste Tempo-música, música-tempo: as colisões de Chronos-Caos, o que se apresenta é um vínculo com o pensamento que Silvio elabora e reelabora constantemente para essa ligação, mas numa esferologia movediça entre o que percebe e entende como “contínuo-descontínuo, permanente-impermanente, vertical-transversal-horizontal e extensivo-intensivo”. Ou seja, um esgarçamento do impasse que é pensar perseguindo os jogos e sentidos do que lê e escuta como música, mas aí, sempre, na condição senciente que ela é quando vem em direção aos corpos e os toca. É possível dizer, até, que esse pensamento está e muito nos desenhos monocromáticos que pratica como extensão do papel, do lápis, do lançar-se à escuta de coisas que nem estão ao seu redor e em como reposicioná-las sem fixá-las.
Nunca à toa o que se pode ler no que escreve vem do que pensam e dizem figuras como Gilles Deleuze e Félix Guattari, por exemplo, e, neste livrinho singular, algo que também se manifesta a partir a partir de Su Tung-po, um poeta e calígrafo da Dinastia Sung, na China do séc. 9; e de François Cheng, nascido em Tsinam e depois mudado para Paris, escrevendo em 2 línguas, no lindo e forte Souffle-Esprit ou em Dialogue avec le Vivant. Numa outra ponta, a presença irrefutável das composições de Olivier Messiaen, que é uma demora em tudo o que faz, do texto à música, da música ao texto, até outras dilações como a do pintor de monocromias do séc. 17, o chinês Shih-t’ao, das densidades da filosofia de Gilbert Simondon até a cosmologia Bantu-Kongo que vem através das leituras de Bunseki Fu-Kiau e Tiganá Santana e as protomelodias da etnomusicóloga Rose Brandel acerca das ideias de música da África Central.
Assim, Tempo-música, música-tempo: as colisões de Chronos-Caos evidencia que a delicadeza do procedimento de Silvio Ferraz está, sem parar, diante de um convite para que corpos diferidos sintam-se convidados, e até convocados, para processos de visitação, este incômodo perene, ao silêncio que a música também é quando invade as derivas do tempo imparável e amalgamado, nem infinito nem finito. O gesto, neste livro, é o de tentar “escutar o ocre do Sena”, como anotou François Cheng.
Manoel Ricardo de Lima