Apenas um corpo / com uma cabeça / e o que se segue / para sondar / a vertigem do infinito / a extensão do mal / as tempestades contrariadas / do amor. Estes versos, que abrem o livro Tribulações de um sonhador contumaz, estabelecem o que, para Abdellatif Laâbi, é um poeta (“apenas um corpo”), o que faz um poeta (“sondar”), e quais os objetos de sua sondagem:
– a vertigem do infinito, como quando escreve, em certo poema: “A junção da sua consciência de pequeno terráqueo anônimo com a emanação do cosmos é de ordem musical”, ou quando menciona aquela espécie de buraco negro que há “nas profundezas não elucidadas da mente”;
– a extensão do mal, de que há tantos exemplos no livro, como no poema que começa dizendo: “Não é uma questão de ombros / ou de bíceps / o peso do mundo / Os que o carregam afinal / são quase sempre os mais fracos”;
– as tempestades do amor: não à toa se lê no poema “Dez palavras” que “Se te vais ajoelhar, que seja diante daquela ou daquele que te preenche de amor”.
Essas três dimensões, que, como em toda grande poesia, aparecem muitas vezes embaralhadas, ora se apresentam nos acidentes mais cotidianos, ora em extraordinárias meditações, como na série “A parada da confidência”, onde frente a um deserto – e suas “ficções”, como escreveu o poeta, suas construções reificadas – sob as estrelas, tendo como companhia a música de Miles Davis (cuja presença é permitida apenas porque seu trompete “remexia em uma memória fragmentada da espécie à procura de um alfabeto perdido que ninguém mais se importa em decifrar”), Laâbi realiza uma viagem cósmica poucas vezes vista na poesia.
Surpreende como essa dimensão cósmica (junto com sua abordagem dos temas considerados mais transcendentais, o amor, a liberdade, a condição humana) abre continuamente passagem para o sentido político deste livro. Pois ela se conecta à capacidade de rememorar a história e de tornar a linguagem uma experiência coletiva (feita com as vozes de muitos). A escrita aqui não apenas “assinala” a subversão, mas “torna-se a subversão”.
Assim, em meio às “coisas novas e ruins” (como escreveu um outro poeta), o autor partilha conosco o desejo de criar, de escrever e de estar no mundo.


Da capo al fine 

