O livro que você está prestes a ler não é um tratado acadêmico usual, ele é lido com a captura envolvente de um romance, apesar de seu foco principal ser o texto de Jacques Lacan “Kant com Sade”, conhecido pela sua complexidade e considerado por muitos como inacessível ou impenetrável. A especificidade e os detalhes acadêmicos que a escrita de Dany Nobus oferece, além do efeito dramático que seu texto produz, introduz com clareza as noções psicanalíticas que Lacan elaborou no texto do início dos anos 1960 sobre o desejo, a Lei, a razão, a fantasia e o gozo.
Situando o leitor nas várias versões do texto de Lacan, publicadas entre 1962 e 1999, Nobus apresenta com detalhes as quatro versões diferentes, revisadas pelo próprio Lacan, como também as outras duas versões que contam com pequenas correções para impressões e reimpressões da publicação dos Escritos. Sabemos que “Kant com Sade” foi encomendado a Lacan pelo editor do Cercle du livre précieux, uma coleção luxuosa. Foi concebido como um prefácio para sua edição legal de La philosophie dans le boudoir (1795) do Marquês de Sade, publicado em uma época em que as obras de Sade ainda eram proibidas na França por serem uma afronta pública.
Em A lei do desejo, a partir de uma leitura atenta e com um confesso “tormento intelectual e emocional”, Nobus reúne um abundante trabalho acadêmico e achados de arquivo. Ao longo de catorze capítulos, Nobus é bem-sucedido na ambiciosa proposta de revitalizar os caminhos suntuosos do complexo texto de Lacan, cujos elogios começam pelo próprio Lacan, que autoproclamou seu próprio esforço despendido na produção do texto e, ainda assim, seu destino foi ser consistentemente ignorado pelos estudiosos da obra de Sade e apenas cautelosamente abordado pelos pensadores psicanalíticos.
Esta monografia é um trabalho excepcional e um guia para o pensamento de Lacan sobre o (des)encontro entre a Ética kantiana – um inabalável imperativo moral considerado como
lei universal baseada na voz da Razão –, e a Ética sadeana – a vontade de gozar visando honrar a voz da (cruel) Natureza. Nobus orienta o leitor quanto à especificidade do meio cultural
e intelectual do período em que Kant e Sade viveram.
Sade traz um novo sistema ético sustentado na vontade de gozo que, em conteúdo ou significação, se opõe ao ideal benevolente da ética kantiana, baseada na existência de Deus e na consistência de uma certa lei moral de pretensão universal. Parece paradoxal à primeira vista que visões aparentemente opostas da virtude – uma de retidão moral e outra de devassidão moral –, possam compartilhar algo central entre si, o que requer um longo e detalhado destrinchar conceitual que Nobus produz de forma magistral ao longo dos vários capítulos deste livro. E, no entanto, mesmo com toda a sua erudição, cuidado e informações generosas, contextuais, e de notas de rodapé, o autor nos deixa caminhar livremente pelo terreno do corpo do texto de Lacan, e não obtura os aspectos herméticos inerentes ao próprio texto do psicanalista francês. Resta intrigante a perpétua indeterminação da relação entre lei, sexo, desejo e gozo, que se desdobra no um a um do ato analítico.
Extraído do prefácio de Hilda Fernandez-Álvarez
Lacan Salon / Corpo Freudiano Vancouver


Natureza humana 2 

