A publicação de A sombra e o nome: sobre a feminilidade da psicanalista Michèle Montrelay preenche no campo das publicações psicanalíticas brasileiras de orientação lacaniana uma lacuna
que se estende há cinco décadas – visto que esta obra foi publicada na França pela primeira vez em 1977 – e isso por vários aspectos.
Em primeiro lugar, porque a autora ficou esquecida durante todo esse tempo, embora tenha desempenhado na Escola Freudiana de Paris (EFP) um papel bastante significativo, tanto no campo teórico quanto político. Ela participou, desde a sua fundação em dezembro de 1968, do ensino do Centro Universitário de Vincennes-Paris VIII, que acabou se revelando um lugar de acolhimento das correntes, muitas vezes contraditórias, que despontaram na EFP, da qual foi membro entre 1965 e 1980, quando ocorreu sua dissolução. Além disso, Montrelay fez parte do grupo de psicanalistas que se opôs à dissolução da EFP e acionou um mandado de segurança para contestar, no âmbito jurídico, logo após seu anúncio, a decisão da dissolução da escola por Jacques Lacan de maneira não-estatutária.
Em segundo lugar, porque esta obra acionou uma importante guinada nas teorias psicanalíticas sobre o feminino e, mais essencialmente ainda, porque o ensaio “Pesquisas sobre a feminilidade”, aqui incluído e publicado originalmente em 1970, representou uma significativa contribuição da autora para a elaboração de Lacan sobre o gozo Outro, feminino, introduzida no seminário Mais, ainda.
Michèle Montrelay estabeleceu nesse ensaio uma revisão do confronto entre as teorias de Freud (libido sempre masculina com ênfase no clitóris e nos substitutos fálicos, como o filho) e a escola inglesa (libido feminina específica com ênfase no interior do corpo e na vagina) em torno da questão da sexualidade feminina. Ela propôs que ambas as teorias deveriam ser levadas em conta para que fosse proposta uma nova noção, a de um gozo fálico suscetível de se tornar, em certas condições, não-fálico, revelador de que as mulheres mantem uma relação fugaz, decerto, mas direta e privilegiada com o Real. Os desenvolvimentos posteriores de Lacan sobre o gozo feminino, concebido como não-todo fálico, encontraram em seus desenvolvimentos matéria extremamente fértil para germinar.
Incensada pela comunidade psicanalítica francesa, Michèle Montrelay manteve nela um lugar muito especial. Após a dissolução da EFP, não se inseriu em nenhuma outra instituição psicanalítica. Proferiu muitos seminários, escreveu vários artigos, foi convidada a participar de trabalhos junto a cartéis formados para estudar sua obra, deu muitas entrevistas em que suas ideias foram interrogadas com elevado interesse e entusiasmo pelos psicanalistas.
É aos textos fundadores de sua obra que o público brasileiro tem acesso agora nesta bela tradução realizada por Tamlyn Ghannam para a coleção Planeta Freud.
Extraído da apresentação de Marco Antonio Coutinho Jorge