Centro de um texto sem centro, núcleo da escrita móvel de Benjamin, Berlim abre-se ao leitor dessa Crônica como um dia teria se aberto, cheia de mistérios, fulgurações e fantasmagorias, aos olhos e aos ouvidos da criança que passeou pelas suas ruas. As imagens deslocadas, os sons mais insignificantes são recuperados no texto, que se volta quase sempre para cenas da vida comum. São nelas, nessas cenas – nas visitas à casa da avó, nas manhãs de compras, na frequentação dos parques e do Zoo, na rotina e na arquitetura interior dos cafés – que o espaço se revela de fato. A cidade é como um organismo vivo – como a própria memória: cresce e modifica-se permanentemente, desfigura-se. Também pode, em certo sentido, desaparecer. A cidade-livro, que se deixa ler e que demanda ser escrita continuamente.
Para Benjamin, Berlim é como um palimpsesto (para retomar a hipótese freudiana sobre o funcionamento da memória): camadas de tempo e de vivências se acumulam e sobrepõem. As ruínas da cidade da infância estão soterradas sobre a nova capital que a Grande Guerra, as crises e catástrofes construíram. A Crônica, escrita de modo descontínuo, é capaz de absorver e transformar em princípio estilístico as disjunções da História. Pela escrita, estilhaços de tempos e espaços distintos se sobrepõem na cidade, que passa a existir, no texto, não como documento ou testemunho apenas, mas sob o signo do sonho e da invenção – Paris projeta-se sobre Berlim, as andanças atuais do escritor na cidade estrangeira dobram-se sobre os passos pregressos da criança e do adolescente. As formas da condensação e do deslocamento presidem a tarefa da rememoração. A cidade é estranha e familiar. É casa e exílio.
Os fragmentos escritos pelo autor sobre a cidade assemelham-se, em muitos momentos, ao que ele definiu em outro lugar como “imagens do pensamento”. Rasgos impressivos deixados pela vivência em Berlim metamorfoseiam-se em instantâneos reflexivos, imagens-síntese que, no entanto, não fixam o sentido. Escandem as recordações ao apresentá-las sob a forma paradoxal do tempo espacializado. Benjamin anota: “a lembrança não é um instrumento de exploração do passado, mas seu palco”. Os quadros do passado desfilam no presente da escrita – perdem a sua grandeza monumental e seu ar sagrado, transformam-se em “iluminação repentina”, como se “um pó de magnésio ardente” acendesse sobre cenas perdidas uma chama capaz de as incendiar por dentro, fazendo com que permitam, desse modo, ver as coisas, o mundo, novamente com intensidade.
Walter Benjamin nunca terminou esta Crônica de Berlim. Ele passou boa parte da última década de sua vida, de um modo ou de outro, envolvido com o texto. Ecos e ricochetes dele podem ser encontrados em diferentes projetos da época – nos anos anteriores (como em Rua de mão única) e nos seguintes (em diversos ensaios, nas Denkbilder, mas sobretudo na Infância berlinense). Os fragmentos fumegantes de sua escrita – pedaços arrancados da memória, troços tomados diretamente do corpo da cidade em vias de desaparecer – permaneceram inconclusos, o que é o mesmo que dizer: abertos, maleáveis, infinitamente expansíveis. “Aquele que uma vez começou a abrir o leque da lembrança sempre encontra novos elos, novos segmentos; nenhuma imagem o satisfaz”, o autor anota logo na abertura do texto, numa passagem que é um comentário bastante agudo sobre a obra de Marcel Proust, que Benjamin então buscava traduzir, mas que também pode ser uma defesa da incompletude como método, ou ainda a descrição (metatextual) dos liames formais da prosa que elabora nesse texto. Associativa, desdobrável, repleta de digressões e desvios, ela é como um campo aberto de escavações: “aquele que procura se aproximar de seu próprio passado soterrado deve se comportar como um homem que cava”. O poço do passado alarga-se e se aprofunda ao mesmo tempo em que a experimentação com os gêneros e com a linguagem vai ganhando corpo. Misto de autobiografia, ensaio, ficção e relato memorialístico, a Crônica de Berlim é um novelo de lembranças e ideias. Ou melhor: um labirinto. Como se sabe, o labirinto, como a memória e o amor, são formas do interminável. Para o autor – que aqui é sobretudo um narrador – o espaço urbano, assim como o tecido mesmo da escrita, enovela-se, volta-se sobre si e faz perder os passos. Uma cidade nunca termina de ser palmilhada – um texto, às vezes, não encontra o seu fim.
Gustavo Silveira Ribeiro (UFMG)


História da literatura e ciência da literatura
Arte, ciências e filosofia no renascimento [vol.2] 

