Há a proposição de um método no título do novo livro de Carlito Azevedo. Nele (Vida: Efeito-V), a exposição de uma dupla interlocução – Brecht, Perec – sugere uma dialética em contraespelhamento (e persistentemente assimétrica) entre distanciamento e infra-aproximação, entre recorte cênico e linha alongada, narrativa,
entre interrupção e movimento em redemoinho de versos, estruturas, sombras, nuvens, céus, morcegos, moscas, sonhos, personagens nomeados (Tamara, Brecht, Kandinsky) ou não, que retornam e retornam, e se recombinam, reconfiguram e diferenciam ao longo dos textos.
A configuração contraditória, exemplarmente constitutiva de todo livro, contrasta o estreito diálogo serial interno e a autonomia episódica de cada segmento desde o conjunto topicamente onírico-pandêmico inicial às sequências finais de cenas infantis e aos recortes associativos quase epistolares pelos quais transita – vite,
vite – O Céu do Rabi. Contrasta, ainda, os exercícios especulativos que dimensionam cenas e sequências e o gesto de agachar, de ver de muito, muito perto gente e coisas, a vida ordinária, sapatos, cabide, as ruas vazias, os cães de rua, a cigarra, um metro quadrado de calçada da rua Senador Vergueiro.
A estrutura em contradição ganha realização verdadeiramente modelar em “Para além”, o quarto da série de episódios que compõem Baleia Branca. Aí assistimos a uma demonstração poemática do princípio da interrupção (brechtiana) da ação. Nele congela-se um aqui e agora, marcado pela urgência em sair, a mala nos pés, um uber à espera na rua – e se interrompe o gesto e se distende o tempo – e uma das mãos fica parada na maçaneta, sem a girar, enquanto na outra dissolve-se uma aspirina num copo d’água. Entre o gesto interrompido e o retorno a ele, extratos temporais díspares (o bairro feio, Jim Morrison, uma antiga namorada, a época Disco) irrompem e se justapõem, transformando e complexificando, assim, a figuração inicial de uma situação de saída iminente. Uma complexificação em eco que incluiria, ainda, Sergio Sant’Anna e Jorge Luís Borges algumas cenas mais adiante, criando uma quase sequência poética (quebrada, claro) voltada – toda ela – para o gesto em suspensão, para a tensão entre intensidade pregnante e desdobramento narrativo.
Igualmente exemplar desse jogo antagônico, mas em movimento a rigor ao avesso ao da interrupção metódica, o poema-coda, com o qual se encerra o livro, expõe um percurso em fuga, um ritmo em aceleração, um sujeito que foge desesperada e ininterruptamente de alguém (semelhante, contrário, aparição, duplo?) – como o anjo benjaminiano da história afastando-se de algo que, no entanto, encara fixamente, enquanto restos e detritos se amontoam a seus pés, à maneira dos livros que se acumulam e projetam – belissimamente – a sua sombra sobre a casa vazia ainda no primeiro texto de Vida: Efeito-V. No poema-coda, se mantido, a todo custo, o extravio entre sujeito e aparição, o percurso e seu ritmo os aproximam, distanciam e implicam mutuamente, projetando – nesse redemoinho – a dinâmica histórica das antagonizações de que emerge o livro.
Flora Süssekind


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