Walter Benjamin dizia que ler um poema é transplantar as flores do jardim da arte para a terra estrangeira do saber: “Essencial é a delicadeza da retirada, a precaução com a qual se arranca a obra com suas raízes que a seguir revolverão a terra do saber.” Ou seja, não é a crítica que, de uma posição superior, vem lançar luz sobre o poema, mas sim o poema subterrâneo que vai explodir o chão aparentemente seguro do saber.
Sempre foi assim que li a poesia de Tite de Lamare. Esperando menos ser aquele que lançaria luz sobre ela, e mais aquele que vai ser revolvido por ela, bouleversado por ela. E essa poesia nunca parou de me surpreender, de me fazer perder o chão. O inconformismo de sua sintaxe, de sua montagem, de suas imagens impedem qualquer tentativa de estabilização de seu verso em uma categoria definida. E essa aventura prossegue, potencializada, nesse potente e novo Janela de proa.
Vejamos um poema como “Um anjo pousa em meu ombro na forma de um papagaio e cochicha junto a meu ouvido:”, que já começa a surpreender pelo título singularíssimo. Tite coloca em cena aqui um vidraceiro, figura canonizada pelo clássico poema em prosa de Baudelaire. Mas desde o título finalizado com dois pontos, ficamos sem saber se a voz que falará, ou melhor, cochichará ali, tem mais do papagaio que só repete o que falamos, como o espelho do vidraceiro só reflete o que está à sua frente, ou se essa voz-sussurro tem mais do anjo, daquela parte do anjo (expressão que também significa “a parte do álcool que se evapora durante a evaporação do vinho”) que é usada por mais de um poeta para significar: “escrever com o que escapa”; no lugar da repetição, a indeterminação. Em vez da ênfase no reflexo, a ênfase na inconsciência do vidraceiro que mal sabe o que os outros veem no espelho que carrega pela rua.
E muito sabiamente a poeta termina o poema sem definir as coisas, termina com um riso e com a cabeça em nevoeiro, não sem antes justamente dizer: “repare a raiz da amendoeira implodindo a calçada”. Como quem diz, não se trata de definir o que é reflexo e o que é nebulosidade, importa o poema implodir
o chão onde nos sentíamos conformados.
Entre tantas riquezas e surpresas desse livro, como a extrema sutileza dos cinco sentidos, a tensão cosmos/caverna (“não estou com meu pé no cosmos / nesta latitude sou um quarto caverna”, que brinca com o quarto-habitação e o quarto-medida), a variedade dos elementos trazidos à cena (dos dedos entrecruzados de Tomé no quadro de Caravaggio aos minibulbos do alho-poró), os devaneios do corpo iogue, não quero encerrar essa apresentação sem pensar que ele é aberto e fechado por poemas cujo primeiro verso é quase idêntico: “Quando eu era menina” e “Quando menina”.
Lembro do poeta Zbigniew Herbert olhando para uma foto de sua infância e para a qual escreveu: “Esse menino está parado como a flecha de Zenão”. Situada no início e no fim do livro, essa menina Tite está parada também como a flecha de Zenão: ao mesmo tempo está no poema-arco que dispara o livro-flecha em seu início, e está, flecha certeira, no alvo da última página.
Carlito Azevedo


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